Diante das diversas manifestações acerca de meus artigos recentemente publicados - Allan Kardec: o autor da doutrina dos espíritos?; Ler, traduzir, interpretar Kardec (Parte I, Parte II e Parte III) -, creio serem necessários alguns esclarecimentos e comentários, sobretudo, no que toca aos pontos controversos na tese ali defendida.
Em primeiro lugar, algumas palavras sobre o título do artigo Allan Kardec: o autor da doutrina dos espíritos?. Como é impossível deixar de notar esse título abriga uma contradição: se a doutrina é dos Espíritos como poderia Kardec ser seu autor? A contradição foi assumida intencionalmente para demonstrar que não desconheço ou ignoro as recorrentes declarações de Kardec nas quais ele atribui aos Espíritos, e não a si, a autoria da doutrina. Na verdade, mesmo diante de tais assertivas, defendo a tese oposta: Kardec é, de fato, o autor, criador da doutrina espírita. Como espero ter ficado claro na série “Ler, traduzir, interpretar Kardec”, a contradição preservada no título do primeiro artigo representa um dilema que o próprio Kardec parece viver ao longo do tempo em que se dedicou à elaboração doutrinária. Um dilema, cujo pivô, é a insistência em classificar o Espiritismo como uma ciência nos moldes da ciência positivista e de acordo com a agenda metodológica do Iluminismo, que previa como critério da validade de qualquer conhecimento que se pretendesse científico, a suspensão de todo pressuposto (ou teoria preconcebida, para permanecermos no léxico kardeciano).
Outro ponto que merece um esclarecimento: ao afirmar que em todo e qualquer empreendimento interpretativo – e sustento a tese de que Kardec estabeleceu os princípios doutrinários do Espiritismo por meio de um empreendimento desses – há sempre uma expectativa de sentido, isso não significa que tal expectativa seja sempre confirmada ao final do processo hermenêutico. Ao contrário, o fenômeno hermenêutico se desenvolve exclusivamente na interação entre a expectativa de sentido do intérprete e o horizonte de sentidos possíveis ofertados pelo texto a ser interpretado. Assim, há interpretações legítimas e ilegítimas. Uma interpretação ilegítima se dá quando as possibilidades de sentido de um texto são violadas para atender à expectativa de sentido projetada sobre ele pelo intérprete. Por outro lado, na interpretação legítima – que não é a mera descrição do que há no texto, ou a descoberta da intenção do autor, mas um ato criativo de atualização de sentido – a expectativa de sentido do leitor-intérprete e o horizonte de sentidos dado pelo texto se fundem e se modificam mutuamente. Cada nova interpretação acrescenta sentidos ao texto, e, simultaneamente, o intérprete reescreve sua expectativa de sentido. Assim, penso, se deu com Kardec e suas fontes.
No entanto, a expectativa de sentido do intérprete se dá não apenas em termos de um conteúdo específico que se espera encontrar no texto a ser interpretado. E este é um ponto que, creio, não ficou muito claro em meus textos. Na verdade, há uma expectativa de que o texto a ser interpretado responda a questões de fundo não tematizadas, muitas vezes não assumidas claramente, mas que direcionam a leitura. Assim, por exemplo, Kardec afirma em A minha primeira iniciação no espiritismo que diante dos fenômenos que contemplava, entreviu a solução para o obscuro e controverso problema do passado e do futuro da humanidade. Uma solução que, conforme ele mesmo diz, procurara por toda a sua vida. Ora, se Kardec buscava, antes de se encontrar com os fenômenos mediúnicos, a solução para tal problema; e, ao se confrontar com tais fenômenos, entreviu a possibilidade de uma resposta, é natural que sua busca tenha determinado em grande medida sua abordagem do fenômeno e influenciado suas conclusões.
Analisar essa predisposição de Kardec na busca de uma solução para o problema que lhe ocupara toda a vida, é um trabalho ainda por ser feito. Minha hipótese é que no fundo esta questão pode revelar-nos algo importante sobre a “experiência originária” a partir da qual a doutrina espírita surge e pode se sustentar ao longo do século XIX, nos moldes do que foi idealizado por Kardec. Essa “experiência”, que não é a “experiência do fenômeno mediúnico”, mas uma “experiência com o tempo em que se vive”, com sua época histórica e as questões que a sustentam, para mim é a chave para compreender a busca prévia que move Kardec na criação de uma doutrina filosófica capaz de solucionar problemas que nenhuma outra filosofia, até ali, pudera solucionar.
Mas, pode-se questionar: com isso a doutrina não estaria datada, circunscrita às circunstâncias históricas do século XIX e, com ele, já não teria prescrito? Se é assim, como se explica, no entanto, que ainda hoje essa mesma doutrina ainda fale aos homens e mulheres do século XXI?
A resposta é simples: é preciso não se esquecer que o Espiritismo não é apenas uma doutrina. Mas que, em torno a essa doutrina formou-se um movimento social de feição variada, que tem sua maior expressão histórica em terras brasileiras. Aqui, no Brasil, por razões que já foram muitíssimo discutidas por sociólogos, antropólogos e historiadores, o movimento espírita tomou configuração própria, embora continue a apontar para a obra kardeciana como “[…] polo simbólico de identificação comum, a despeito dos diversos modos de vivenciar o espiritismo”, como disse o antropólogo Bernardo Lewgoy.
Embora seja necessário ressaltar que nunca houve no seio do movimento espírita uma tradição de interpretação sistemática da obra kardeciana – embora tenha havido esforços isolados nesse sentido – , é inegável que, não importa se os adeptos digam que o Espiritismo é uma religião, ou apenas ciência e filosofia; sempre que o fazem, indicam a obra kardeciana como referência de autoridade para sustentar sua tese. E, assim, cunhou-se um costume generalizado de utilização dessa obra para se fundamentar apologeticamente (e, muitas vezes, dogmaticamente) expectativas de sentido que não respeitam o texto e seu contexto, nem o horizonte dos sentidos por ele oferecido.
Justamente as reinvenções históricas dos sentidos do texto, as apropriações que o movimento espírita fez da obra kardeciana ao longo do tempo, sua “complementação” a partir das chamadas “obras suplementares”, etc.; não permitiram que a obra de Kardec se esgotasse, ao menos no Brasil, junto com as circunstâncias que a produziram. Assim, a conversão da obra kardeciana em texto-fonte (ou “polo simbólico”), gerador contínuo de identidade para os diversos modos de ser espírita que se desenvolveram historicamente, e não qualquer pretensa supra-historicidade da doutrina, transformaram essa mesma obra de um texto datado em um texto revelador de novos sentidos e capaz de perdurar na história.
Por isso, para mim, toda a polêmica suscitada por alguns setores do movimento espírita na atualidade, sobre a necessidade de se atualizar Kardec, parece-me absolutamente fora de propósito. Pois, se até hoje Kardec e sua obra não viessem sendo atualizados – com renovadas leituras e apropriações – teriam se tornado meras relíquias de um passado recente.
No entanto, tenho pensado muito sobre isso, é necessário – diria mesmo urgente – ao movimento espírita superar o positivismo kardeciano. Não como se tem feito: tentando transformar Kardec e sua doutrina em precursores das novas descobertas científicas; forçando o texto para que diga o que não pode dizer. Ou simplesmente apregoando um retorno à fontes para encontrar a ilusória “pureza doutrinária”. Mas, redescobrindo aquela experiência originária da qual partiu Kardec e abrindo-se para sua própria experiência originária, ir além de Kardec, sem, contudo abandoná-lo.
4 comentários:
Augusto Araújo, paz e parabéns pelo teu blog. Certamente virei outra vez mais para pesquisar neste tema espiritismo, especialmente me interessa entender o conceito filosófico do ponto de vista espírita...
Já te sigo e peço que me ajude e divulgar meu blog.
http://wwwteologiavivaeeficaz.blogspot.com/
Profº Netto, F. A.
Caro Francisco: agradeço sua visita e o apreço por meu trabalho. Sinta-se completamente à vontade para comentar os posts.
Em meu trabalho, prezo pela diversidade e pelo diálogo franco e aberto. Sendo assim, quanto mais pontos de vista sobre os temas aqui tratados, mais poderemos enriquecer o debate.
Forte abraço e boa sorte com seu blog!
A.
Olá, Augusto!
Sei que você preferiria que eu fizesse observações mais críticas sobre teu trabalho e você sabe que sou muito crítico.
Mas, não tem jeito. Eu praticamente concordo com tudo o que você escreve! E fico mesmo feliz porque muito do que penso vejo refletido em seus textos.
Um abração!
Oi Vital:
Pois é... justamente por conhecer sua capacidade crítica (sempre muito oportuna, é bom que se diga), eu fico muitíssimo lisonjeado com sua declaração de que concorda com a maior parte de minhas ideias.
Grande abraço!
A.
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