Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

quarta-feira, abril 28, 2010

Religião e Filosofia

 

Excertos de um texto de Martin Buber *

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I

A dificuldade para fazer uma distinção radical entre os terrenos da filosofia e da religião e, ao mesmo tempo, saber superar essa dificuldade pode, com maior clareza, ser manifestada quando comparamos duas pessoas representativas desses terrenos: Epicuro e Buda.

Epicuro ensina não apenas que existem deuses, isto é, seres imortais perfeitamente puros, que vivem nos espaços entre os mundos, mas que não têm poder sobre o mundo nem interesse por ele; ensina também que esses deuses devem ser venerados por meio de pensamentos piedosos e dos costumes tradicionais, sobretudo oferecendo-lhes, devidamente, piedosos sacrifícios. Ele mesmo os adora e lhes sacrifica, mas em seguida acrescenta, citando palavras de uma figura da comédia: “Ofereci sacrifícios a deuses que não me deram atenção”. Aqui está presente uma espécie de dogma, acompanhada de um culto; não obstante, percebe-se com clareza que não se trata de uma situação religiosa, mas filosófica.

Buda trata os deuses da crença popular, quando os considera dignos de menção, com uma tranquila e superior benevolência, e não sem ironia: essas figuras celestes que, mesmo sendo poderosas e – ao contrário dos deuses de Epicuro – estando voltadas também para o mundo dos homens, estão, como eles, acorrentados à cadeia do desejo e, como eles, envolvidas na “roda dos nascimentos”. Podemos venerá-los e cultuá-los, mas a lenda, coerentemente, leva a que se venere a ele, o Buda, o “desperto”, o liberto, o que liberta da roda dos nascimentos. Porém Buda reconhece um ser verdadeiramente divino, “não nascido, não formado, não criado”. É certo que só o conhece nessa descrição inteiramente negativa, recusando-se a fazer qualquer declaração a respeito dele, mas relaciona-se com ele com todo o seu ser. Não nos deparamos aqui nem com uma doutrina sobre Deus nem com um culto de Deus e, não obstante, nos encontramos diante de uma realidade claramente religiosa.

II

Assim, o que é decisivo para a religião autêntica não é o aparecimento do divino como pessoa, e sim que eu me comporte em relação a ele como em relação a um ser diante de mim. Envolver o divino inteiramente na esfera do humano suspende a divindade do divino. Não é necessário que se saiba algo sobre Deus para realmente pensar em Deus, e muitos fiéis verdadeiros sabem falar a Deus, mas não sabem falar de Deus. O Deus desconhecido, quando se tem a coragem de viver para ele, de ir-lhe ao encontro, de invocá-lo, constitui o objeto legítimo da religião; quem se recusa a deixar Deus limitado ao transcendente tem dele ideia maior do quem se limita a isso; mas quem o limita ao imanente está pensando em outra coisa, e não nele.

[…]

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* BUBER, Martin. Religião e Filosofia. In: ______. Eclipse de Deus. Considerações sobre a relação entre filosofia e religião. Campinas: Verus Editora, 2007. p. 27-46. (Trad.: Carlos Almeida Pereira).

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