Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

domingo, agosto 22, 2010

Ler, traduzir, interpretar Kardec – Parte I

 

Na última quarta-feira (18/08) estive mais uma vez com os amigos e amigas da ASSEPE – Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa – refletindo sobre o tema “Ler, traduzir, interpretar Kardec”. Como sempre, foi uma oportunidade maravilhosa de partilha do que tem sido meu esforço nos últimos meses: compreender a obra e o pensamento do fundador do Espiritismo, Allan Kardec (1804-1869). O maior mérito, contudo, do sucesso deste encontro fica com meus interlocutores – os membros da ASSEPE – que não se furtam ao trabalho do pensar nem ao diálogo com o diferente.

Conforme compromisso assumido por mim junto ao secretário da Associação, Néventon Vargas, gostaria de publicar a partir de hoje algumas notas que nortearam nossa conversa e, ao mesmo tempo, indicar fontes para a continuidade discussão.

 

Kardec1

 

 

O debate teve como pré-texto o ensaio "Allan Kardec: o autor da doutrina dos espíritos?", originalmente publicado no Jornal Opinião (Ano XVI, Nº 176, Julho 2010). Neste texto defendo a tese de que Kardec é o intérprete de fontes de informação diversas, muitas vezes fragmentárias, que se fossem simplesmente colocadas lado a lado, não formariam um todo coerente. Não se questiona se tais fontes seriam, como ele alega, fontes espirituais. Mas, com base em da seguinte afirmação do próprio Kardec: “C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857” [1]; e por mim traduzida: “Da comparação e da fusão de todas estas respostas coordenadas, classificadas e muitas vezes reparadas (modificadas, refeitas) no silêncio da meditação, que eu formei a primeira edição do Livro dos Espíritos, o qual apareceu a 18 de abril de 1857”; concluo pela tese da autoria, muito embora, em diversas outras ocasiões Kardec atribua que a Doutrina é dos Espíritos, não de um único homem. Porque, “penso que não importa se as fontes de uma pesquisa sejam os Espíritos ou um pensador “de carne e osso”; se alguém compila, classifica, modifica, edita, interpreta suas fontes, ele é o autor”.

Desta conclusão, um natural questionamento pode surgir para aqueles que, minimamente, conhecem a obra kardeciana: se concordarmos que Kardec é o autor da “doutrina dos Espíritos”, isso não significaria que ele mentiu atribuindo aos Espíritos um trabalho que foi apenas dele? Provavelmente, todos nós conhecemos as diversas passagens nas quais nosso autor afirma categoricamente que a doutrina espírita não é obra de um homem, mas do conjunto do ensino concordante dos Espíritos. Ou quando, em A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, Kardec faz uma distinção entre o que é “segundo o Espiritismo” – o que equivale a dizer: segundo o ensino dos Espíritos – e suas opiniões pessoais apresentadas apenas como hipóteses. Ou ainda, as passagens nas quais descreve sua metodologia de pesquisa – em A Gênese e em A minha primeira iniciação no Espiritismo (no volume das Obras Póstumas) como isenta de pré-juízos ou “teorias preconcebidas”. Como então, insistir nessa tese de que Kardec é o autor?! E, nesse caso, essa “mentira” não causaria uma diminuição no grau de confiabilidade que os espíritas podem ter na obra kardeciana e no próprio Kardec?

Honestamente, eu penso que não: afirmar, contradizendo Kardec, que ele é o autor da doutrina que atribui aos Espíritos, não é o mesmo que afirmar que Kardec mentiu. Em primeiro lugar porque a mentira pressuporia que Kardec, deliberadamente, tenta enganar seus leitores. E não defendo que isso tenha acontecido. Tampouco defendo que Kardec tenha declinado da autoria em favor dos Espíritos por “humildade”. Ao contrário, para mim o que marca essa decisão é uma forte consciência da importância do método como fator de fortalecimento da ideia de uma “ciência espírita”. De fato, Kardec declara:

Apliquei a esta nova ciência, como o fizera até então, o método experimental; nunca elaborei teorias preconcebidas; observava cuidadosamente, comparava, deduzia consequências; dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão. [2]

Tal consciência metodológica, fazendo, eco à pretensão iluminista da suspensão absoluta de todos os pressupostos e na autonomia radical da razão que a tudo e todos pode avaliar e fazer conter em seus limites, conferiria ao Espiritismo sua cientificidade. Kardec, filho de seu tempo, “[...] formado na tradição cultural do século XVIII [...]”, como bem recorda José Herculano Pires, “[…] compreendeu claramente que o problema de seu tempo repousava na questão do método [...]”[3]. Dessa maneira, a agenda iluminista, que o positivismo do século XIX assume como sua, e que tem como pressuposto que qualquer conhecimento só se torna válido quando baseado na ausência completa de pressupostos e expressão de uma racionalidade autônoma, tornou-se naturalmente a agenda do próprio Kardec.

Tal entendimento do método, contudo, é problemático não apenas porque não retrata o que acontece em todo fenômeno hermenêutico, mas porque, se fosse possível de ser alcançada seria indesejável. Na próxima parte deste post, veremos como a hermenêutica contemporânea resgata os pressupostos, redimindo-os frente à consciência metodológica iluminista. E, através de exemplos, pretendo demonstrar como também Kardec possuía seus pressupostos na composição da doutrina espírita.

(Continua…)


[1] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. P. 353. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O texto original em francês é: "C'est de la comparaison et de la fusion de toutes ces réponses coordonnées, classées et maintes fois remaniées dans le silence de la méditation, que je formai la première édition du Livre des Esprits qui parut le 18 avril 1857". (Cf.: KARDEC, Allan. Ma première initiation au espiritisme. In: ______. Oeuvres Posthumes. Union Spirite Française et Francophone. s/d. p. 128).

[2] KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. op.cit. p. 299.

[3] PIRES, José Herculano. A Pedra e o Joio. São Paulo: Edições Cairbar, 1975. p. 18.

8 comentários:

Vital Cruvinel disse...

Já começou bem, Augusto!

Não vejo a hora de ler a segunda parte!

Abraço!

Rosângela Oliveira disse...

Amigo,
Saudades...
Procurarei passar por aqui todos os dias...
Espero que estejas falando "dos médiuns utilizados por Kardec", para enriquecerem o seu próximo post.
Seriam eles os autores???
Gostaria de compreender melhor sua alusão sobre ser "um autor" de algo.
Beijos

Augusto Araujo disse...

Oi Vital:

Espero publicar a segunda parte amanhã (23/08), e a terceira (sim, haverá uma terceira! hehehe...) no dia seguinte.

Obrigado por seguir as "Mansões", meu amigo! Abraço.

Augusto Araujo disse...

Rosângela, as saudades são recíprocas. Nesta pequena série de artigos não falarei dos "médiuns utilizados por Kardec". Aqui, não estou considerando o conteúdo espiritual e a possibilidade da comunicação entre espíritos e homens, tema no qual a mediunidade se encaixaria melhor. Minhas considerações são mais formais sobre a autoria da doutrina (entenda: as obras básicas publicadas por Kardec). Os dois próximos posts, creio, esclarecerão um pouco mais meu ponto de vista. Mas, vá lendo e discordando - se for o caso - fico muito honrado com suas visitas.

Beijo pra você e pro "dr." Eduardo.

Homero disse...

Caro Augusto,

Incialmente, parabéns pelo seu Blog e cumprimentos pelo seu trabalho que tem sido muito instrutivo para mim. A sua tese de Kardec como autor do Espiritismo é muito interessante. Penso, como você, que o fato, se verdadeiro, não diminui a confiabilidade na importância da Doutrina, pelo contrário. Vou ficar muito satisfeito se for levado a reconhecer, com força de seus argumentos, que você tem razão. Portanto, amigo, fique claro: desejo muito que você esteja certo!
Todavia, por enquanto, confesso a minha dificuldade em concordar com o seu argumento principal. É certo que Kardec “da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação", elaborou a primeira edição de O Livro dos Espíritos, como você lembra no ensaio, publicado no jornal Opinião. A questão é se isso faz dele o autor da Doutrina. O que ele escreveu, como resposta dos espíritos às suas perguntas (extraídas de questões constantes da fonte inicial: os cinquenta cadernos)teve, inclusive, acompanhamento, revisão e aprovação, como no caso do espírito que se identificou como Verdade. E, sobretudo, se não admitirmos que Kardec omitiu a autoria do Espiritismo por modéstia ou "humildade", então, como não "ouvir" a sua explícita rejeição?
“V.(...)Agora vejo quanto é vasto o campo aberto pelo vosso sistema.
A.K. — Nisso vos contesto, caro senhor; dais-me subida honra atribuindo-me esse sistema quando ele não me pertence. Ele foi totalmente deduzido do ensino dos Espíritos. Eu vi, observei, coordenei e procuro fazer compreender aos outros aquilo que compreendo; esta é a parte que me cabe.
Há entre o Espiritismo e outros sistemas filosóficos esta diferença capital; que estes são todos obra de homens, mais ou menos esclarecidos, ao passo que, naquele que me atribuís, eu não tenho o mérito da invenção de um só princípio.
Diz-se: a filosofia de Platão, de Descartes, de Leibnitz; nunca se poderá dizer: a doutrina de Allan Kardec; e isto, felizmente, pois que valor pode ter um nome em assunto de tamanha gravidade?
O Espiritismo tem auxiliares de maior preponderância, ao lado dos quais somos simples átomos.” (O que é o Espiritismo – ed. FEB, Segundo Diálogo - o Céptico, pag. 133).

Um abraço.

Homero.
Pelotas(RS)

Augusto Araujo disse...

Caríssimo Homero:

Em primeiro lugar: muitíssimo obrigado por sua visita e seus comentários elogiosos! Sinto-me honrado de que o "Mansões" esteja repercutindo tão positivamente em sua reflexão.

Obrigado igualmente por sua disposição em "ouvir" uma tese que é contrária à sua convicção pessoal; e por estar aberto ao diálogo construtivo.

Minha interpretação da obra kardeciana não tem a pretensão de ser "a" interpretação, mas apenas ser uma interpretação possível e legítima do trabalho gigantesco deste autêntico filho do século XIX.

Dada a importância de suas ponderações gostaria de lhe pedir permissão para respondê-la diretamente no blog, após a publicação da última parte do artigo (que deve sair por esses dias). Ok?

Por fim, gostaria de lhe convidar a continuar frequentando as "Mansões", e fazendo ecoar sua voz por nossos salões. Será sempre um privilégio ter leitores participantes e exigentes como você. Um abraço! A.

SOCIEDADE ESPÍRITA CASA DA PRECE disse...

Prezado Augusto,

Obrigado por sua consideração às minhas ponderações.

Fique à vontade para responder.

Abraço.

Homero

Carlos disse...

Prezado Augusto, fica aqui meus sinceros elogios ao seu trabalho. É muito necessário o reconhecimento do contexto em que surge a obra de um autor para bem avaliarmos os meios ao qual ele recorreu para dar sua própria contribuição interpretativa a problemas e desafios. Isso é especialmente válido e útil no que toca à questão metodológica, foco de sua apresentação aqui. Ter claro em mente que Kardec foi um pesquisador fortemente imbuido dos referenciais metoldológicos do iluminismo-positivismo ajudar a defninir melhor os traços de seu estilo e dialética, que não poderiam ter sido outras diante de seu tempo e meio, embora, claro, suas implicações e utilização tenham sido bem diferenciadas em confronto com o paradigma dominante que produziu e se utilizava da mesma metodologia.
Parabéns mais uma vez,

Carlos Antonio Fragoso Guimarães