Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

segunda-feira, agosto 23, 2010

Ler, traduzir, interpretar Kardec - Parte II

 

pessoa Allan Kardec 5

 

A “redenção dos pressupostos”

 

Terminei o post anterior afirmando que o ideal metodológico iluminista de um conhecimento fruto da ausência completa de pressupostos – ou de teorias pré-concebidas, para ficarmos no âmbito do pensamento kardeciano – e de uma racionalidade autônoma, que seja sua própria medida e que meça tudo o mais, não apenas é incompatível com o que de fato acontece em todo e qualquer fenômeno hermenêutico; como, se fosse possível, seria de todo indesejável. Neste ponto, apenas faço eco à palavras de Marco Antonio Casanova que afirma em sua apresentação ao pensamento de Hans-Georg Gadamer (1900-2002):

A suspensão de nossos pressupostos significaria propriamente uma dissolução de toda orientação prévia e de toda expectativa de sentido em relação ao que se deveria interpretar. Sem tal orientação e tal expectativa, porém, não teríamos nem mesmo como nos aproximar do que deveria ser interpretado, uma vez que é essa orientação e essa expectativa que conduzem a aproximação. Do mesmo modo, não há como imaginar a interpretação como um processo que se constrói paulatinamente do zero e vai ascendendo a um campo de sentido determinado por meio de cada um de seus passos. Se já não lêssemos um texto, por exemplo, guiados por uma expectativa de sentido específica, jamais poderíamos reunir as diversas palavras do texto com vistas a esse sentido, de tal modo que a leitura permaneceria presa a uma pluralidade de frases desconexas. [1]

Assim, se as coisas tivessem se passado com Kardec tal como ele descreve; se, no processo de construção da doutrina espírita, ele não possuísse qualquer ideia prévia do que poderia encontrar nos fenômenos e nas comunicações com que trabalhava, todo seu trabalho seria infrutífero. De fato, o problema não se encontra em possuir ou não pressupostos ao se interpretar textos, mas na expectativa ingênua de que tais pressupostos sejam sempre confirmados.

Por isso, ao apresentar como exemplo do método empírico aplicado à construção da doutrina o princípio doutrinário segundo o qual há Espíritos comunicantes que acreditam não estarem mortos [2], Kardec não está indicando que trabalhou absolutamente sem pressupostos. Ao contrário, podemos encontrá-los em abundância: o pressuposto da existência de Espíritos; o da possibilidade de comunicação entre eles e os homens (encarnados); o de que é possível conhecer o que se dá após a morte através destas comunicações; o de que o método científico (positivo) pode ser aplicado às “coisas metafísicas”, etc. E, mesmo que se argumente (e se acredite) que tais pressupostos foram estabelecidos “cientificamente” por Kardec; ainda sim são pressupostos sem os quais afirmar que no mundo dos Espíritos há Espíritos que acreditam ainda estarem vivos, não faria qualquer sentido.

Mesmo a existência e comunicabilidade dos Espíritos – princípio básico da doutrina espírita, estabelecido, segundo Kardec, a partir da análise das manifestações físicas e pela demonstração de sua causa inteligente – não foram encaradas por Kardec a partir de uma ausência completa de pressupostos. Leia-se nos primeiros parágrafos do ensaio autobiográfico A minha primeira iniciação no Espiritismo, publicado no volume das Obras Póstumas, a descrição de como Kardec recebe a notícia das mesas girantes. O “ceticismo” inicial, como ele gosta de descrever, não representa ausência de pressupostos. Antes, representa um preconceito bem caracterizado, calcado numa compreensão dos fenômenos à luz da teoria do magnetismo animal.

Igualmente, ao se defender da acusação de que ao ensinarem a teoria da reencarnação os Espíritos estariam tão somente atendendo à sua expectativa de sentido no que toca ao problema da preexistência da alma e sua destinação, Kardec explica:

Quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, estava tão distante do nosso pensamento que, sobre os antecedentes da alma havíamos construído um sistema completamente diferente, partilhado, aliás, por muitas pessoas. Sob esse aspecto, portanto, a Doutrina dos Espíritos nos surpreendeu profundamente; diremos mais: contrariou-nos, porquanto derrubou as nossas próprias ideias. Como se pode ver, estava longe de refletí-las. Mas isso não é tudo: nós não cedemos ao primeiro choque; combatemos, defendemos nossa opinião, levantamos objeções e só nos rendemos à evidência quando percebemos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as dificuldades levantadas pela questão.[3]

O que tais exemplos tornam patente? Que, ao contrário do que afirma, Kardec possuía sim, pressupostos e expectativas de sentido no momento da formulação da doutrina. Como disse no ensaio Allan Kardec: o autor da doutrina dos espíritos?, defendo a tese de que Kardec é o intérprete de fontes de informação diversas, muitas vezes fragmentárias, que se fossem simplesmente colocadas lado a lado, não formariam um todo coerente. E, como afirma Casanova:

Nenhuma interpretação se movimenta para além de um espaço previamente aberto pela compreensão. Esse espaço não é um espaço restrito qualquer, mas aponta muito mais para uma totalidade que determina de maneira integral todas as possibilidades interpretativas subsequentes. A compreensão realiza, em outras palavras, incessantemente o projeto de um horizonte globalizante, que funciona como campo de sentido prévio. No interior desse campo, uma série de coisas se mostram como possíveis, outras como impossíveis, enquanto outras não chegam nem mesmo a vir à tona segundo a chave do possível e do impossível. A interpretação atualiza, então, aquilo que a compreensão abre como possível e retém por meio disso a articulação originária com o horizonte compreensivo. Nessa atualização, porém, a interpretação conta ainda com um conjunto de estruturas prévias (preconceitos no sentido mais próprio do termo) que promovem a performance interpretativa mesma. Nesse movimento, contudo, o intérprete não se vê condenado a seus preconceitos. O que caracteriza o acontecimento hermenêutico é muito mais uma revisão incessante da expectativa de sentido e do esboço de totalidade inicialmente projetadas. [4]

Os exemplos demonstram, portanto, que Kardec, o intérprete, “não se vê condenado a seus preconceitos”. Ao contrário, frente ao(s) texto(s) das comunicações a ser(em) interpretado(s), realiza uma revisão – não sem antes defender seu ponto de vista peculiar – “da expectativa de sentido e do esboço de totalidade inicialmente projetados”, numa autêntica “performance hermenêutica” que lhe assegura o epíteto de autor da “doutrina dos espíritos”.

(Continua…)


[1] CASANOVA, Marco Antonio. Apresentação à edição brasileira. In: GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da Obra de Arte. São Paulo: Martins Fontes: 2010. p. XI.

[2] KARDEC, Allan. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p. 30. (Tradução: Evandro Noleto Bezerra)

[3] KARDEC, Allan. Da Pluralidade das Existências Corpóreas. In: ______. Revista Espírita. Jornal de Estudos Psicológicos. Ano Primeiro – 1858. Novembro. N. 11. Rio de Janeiro: FEB, 2007. p. 446-447. (Tradução: Evandro Noleto Bezerra)

[4] CASANOVA, op.cit., p. XII. O negrito é meu.

6 comentários:

Nevo disse...

Caro Augusto
Insiro este comentário entre seus posts apenas para ratificar meu profundo interesse no desenvolvimento da sua tese.
Não há como contrapor argumentos à sua exposição sem avaliação mais detida e minuciosa, o que nos anima a aguardar os posts seguintes e, principalmente, novos encontros presenciais que mais nos instrumentalize para a construção dialógica tão perseguida por nós.
Muito agradecido! Parabéns!
Grande abraço
Nevo

Augusto Araujo disse...

Oi Nevo, eu que devo agradecer pela oportunidade de construir o diálogo. Como disse, em minha última visita, a maior dificuldade numa proposta como a minha - de "ler, traduzir, interpretar Kardec" - se encontra justamente na escassez de interlocutores, tanto no meio acadêmico quanto no meio espírita. A ASSEPE tem sido uma das felizes exceções. Sua abertura à pluralidade de posicionamentos, sua capacidade de diálogo (que implica na ausculta e na interlocução), tem sido um incentivo a mais em meu trabalho.

Um grande abraço!

Homero Ward da Rosa disse...

Caro Augusto,
Agradeço e atendo o seu hospitaleiro convite para visitar o Mansões e opinar sobre os seus textos, sempre cuidadosos, primando pela clareza.
Gostei do seu posicionamento:
"Minha interpretação da obra kardeciana não tem a pretensão de ser "a" interpretação, mas apenas ser uma interpretação possível e legítima do trabalho gigantesco deste autêntico filho do século XIX."
Sem dúvida, o mérito de Allan Kardec é extraordinário. Apesar da minha dificuldade em atribuir-lhe a autoria dos fundamentos do Espiritismo, é inegável a sua capacidade de trabalho e preparo intelectual. Em breves 12-15 anos, organiza perguntas, interroga almas, evoca espíritos, comenta, debate, amplia as respostas com seu entendimento, sistematiza. Escreve textos e livros. Sempre embasado em seu método racional de análise. Além disso, submete as respostas mediúnicas ao que ele denominou de Controle Universal do Ensino dos Espíritos. Não tenho notícia de Kardec utilizando uma máquina de datilografia. Portanto, suponho que tenha escrito à mão toda a obra espírita, incluindo um número mensal da Revista Espírita, até abril de 1869, tendo desencarnado em 31.03.1869. Disciplinado, metódico e determinado, ainda conseguia tempo para atividades profissionais de sustento, viagens para divulgação da doutrina, etc. Foi indubitavelmente um homem excepcional. Juntamente com os Espíritos da Codificação, legou ao mundo uma obra capaz de contribuir para a transformação da sociedade humana.
Concordo com você que é vã a tentativa de completa ausência de pressupostos na interpretação dos fenômenos. Que, ademais, “se fosse possível, seria de todo indesejável.”
Desculpe, amigo, mas não penso que Kardec tenha chegado ao fenômeno espírita com qualquer pressuposto da existência de espíritos. Ao contrário, o pressuposto dele era de que aqueles fenômenos que se observavam na casa da Sra. Plainemaison, anunciados com entusiasmo e exaltação, não passavam de “fábula para provocar o sono.”
Mas ele era um homem informado e intelectualmente preparado. Era um educador, observador arguto, sensato e paciencioso. Trazia a experiência acumulada em cinquenta anos de vida. Sobretudo, não lhe faltava humildade, o que lhe permitiu mudar o pressuposto inicial. E considero que não o fez substituindo-o por outro, mas, sim, despindo-se de pré-juízos sobre o fenômeno, para, de um distanciamento necessário, poder examiná-lo com mais cuidado. A existência de Espíritos que se comunicavam não foi pressuposta mas mostrou-se. Kardec partiu dos fatos, “o argumento sem réplica”, para derivar deles as consequências morais que fundamentam a Doutrina Espírita. Foram seres que se identificaram como “Espíritos ou Gênios” que provaram a Kardec a sobrevivência da alma após a morte física.
“O ser misterioso que assim respondia, interrogado sobre a sua natureza, declarou que era Espírito ou Gênio, declinou um nome e prestou diversas informações a seu respeito. Há aqui uma circunstância muito importante, que se deve assinalar. É que ninguém imaginou os Espíritos como meio de explicar o fenômeno; foi o próprio fenômeno que revelou a palavra. Muitas vezes, em se tratando das ciências exatas, se formulam hipóteses para dar-se uma base ao raciocínio. Não é aqui o caso.” (LE, Introdução IV,pág.20, ed.FEB, 76ª edição) grifos meus.

Um abraço.
Homero.

Augusto Araujo disse...

Mais uma vez, muito obrigado Homero, pelas palavras e pela apreciação de meu trabalho. Enquanto não publico a terceira e, espero, última parte do artigo em questão, gostaria apenas de esclarecer que não afirmei que Kardec tenha chegado ao fenômeno espírita com qualquer pressuposto da existência dos Espíritos. Talvez, eu não tenha sido muito claro: na verdade o que defendo é que havia um pressuposto, baseado no magnetismo animal de que mesas poderiam ser magnetizadas e se mover; mas que, como não dispunham de nervos e inteligência, não poderiam falar através de pancadas. Meu argumento, portanto, é apenas: havia pressupostos. Kardec não encarou os fenômenos sem "teorias preconcebidas" como costumava dizer. Bem, apesar disso creio que este raciocínio se aplique apenas ao contexto das manifestações - a possibilidade de comunicação - já que Kardec, me parece sempre foi espiritualista, portanto sempre acreditou na existência e sobrevivência do espírito após a morte do corpo. Não é?

Ao se deparar com os fenômenos e, vencido o pressuposto inicial, Kardec sim, o substitui pelo da possibilidade de provar empiricamente, mediante os fenômenos, que o espírito exista e possa se comunicar.

Nosso problema com os pressupostos - ou antes, a resistência que temos aos pressupostos - é que sempre pensamos que ele causem dano ao conhecimento, quando não é verdade. O danoso é buscar sempre confirmá-los a qualquer custo.

Um abraço. A.

Homero Ward da Rosa disse...

Ok Augusto,

Sem dúvida, quando escrevi que Kardec não substituiu o pressuposto céptico inicial, por outro, faltou-me escrever: o da existência de Espíritos que se comunicam. Foi só a partir da manifestação destes que Kardec, pelo raciocínio não pela presunção, decidiu estudar empiricamente as manifestações. Mas, ressalvando que tal estudo, embora metódico, não se iguala ao analisado pelas ciências:

“Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que
têm independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos
caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da ciência propriamente dita.”

Por isso vejo como problemática a tentativa de enquadrar o Espiritismo como ciência, embora reconheça a necessidade e a validade de estudar e acompanhar metódicamente as manifestações mediúnicas e alguns outros eventos.

Abraço.

Homero

Kaio disse...

Caro Augusto...Salve!

Muito bom texto. Muito bem construido, muito bem fundamentado, muito bem esclarecido. Sua habilidade de pesquisador e seu talento para bem escrever, lhe promete boas glórias ainda.
Com relação ao texto "Ler,traduzir e interpreta Kardec parte I e II" vejo nesse trabalho uma verdadeira peça de arte. Sim, porque você esculpe, modela e retoca o texto com o talento dos grandes artistas. Além da paciência de um cirurgião!
Como eu já havia te comunicado anteriormente, na ocasião do encontro na ASSEPE, a expressão "autor da doutrina dos espíritos" me pareceu um tanto quanto insinuador da possibilidade de que toda a construção espírita Kardeciana seria uma fraude. O que revelaria um grave equívoco tal pensamento, apesar de existir um certo grau de possibilidade (tudo é possível, inclusive nada). Porém, uma sequência de fatos e evidências de fatos confirmam os relatos Kardecianos. Tal sustentação de "fraude" seria infundada, coisa que você não faria, isso nós já sabemos.
É sabido também que Kardec atribui a autoria do conhecimento espírita aos Espíritos, deixando uma menor parte para ele (a parte que lhe cabe neste latifundio). Essa parte ele a definiu como sendo a de um trabalhador que coordena, analisa, classifica, etc., como se fosse possível fazer tudo isso mecanicamente, como um procesador de alta geração que apenas executa um comando, sem a participação consciente e interpretativa. Seria uma bela ingenuidade acreitar nesta hipótese! Eu diria, não como você expressou que kardec seria autor da doutrina dos Espíritos, mas colocaria ele como co-autor.
Concordo com sua defesa interpretativa, que por sinal é de um valor histórico inimaginável para nossa atualidade espírita.
Somente para finalizar minha retórica. Evidencia-se no percurso Kardeciano que os presupostos iniciais, quando do surgimento de seu interesse pelos fenômenos espiritas, são da ordem de uma fenomenologia magnética e anímica, sem a presuposição direta da existência ou interferência dos espíritos em tais fenômenos, porém, acredito que ele já matinha algum tipo de contato com literaturas espiritualistas ou religiosas, quiçá filosóficas, que abordavam a existência de tais "espíritos", basta ver o esforço que ele faz para fundamentar as bases espíritas e aproximar tais conhecimentos com os grandes filósofos Gregos, como Sócrates e Platão.
Como bem defendeu você que Kardec já era espiritualista, então, sob tal a hipótese, penso que aumenta a possibilidade de ele ter considerado por antecipação, sem base de confirmação, que os fenômenos que fora chamado á observar "eram dos Espíritos", até porque, suponho, com os próprios amigos já haviam relatos e evidências de que eram os Espíritos que se comunicavam. Por mais isensão que Kardec possa ter tido, se ele acreditava que era possível a existência dos Espíritos, não haveria motivos para ele iniciar as suas pesquisas negando, não achas?!Bem, quem sabe você não desvela isso pra gente!

Espero não ter complicado muito, nem fundido a cuca...Morfeu me chama!

Grande abraço.