Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

quinta-feira, agosto 26, 2010

Ler, traduzir, interpretar Kardec – Parte III

 

ALLAN KARDEC JOVEM

 

À guisa de conclusão

Como vimos, “o que caracteriza o acontecimento hermenêutico é muito mais uma revisão incessante da expectativa de sentido e do esboço de totalidade inicialmente projetadas”. E, a partir de exemplos retirados da obra kardeciana concluí pela posição de Kardec como intérprete do ensino dos Espíritos, e consequentemente, autor da doutrina espírita, uma vez que deste ensino fragmentário a doutrina não surge naturalmente. Num caso como este, o intérprete torna-se autor, pois, não é o mero reprodutor de suas fontes. Ao contrário, envolve-se num processo criativo a partir do qual a interpretação é ordenada segundo procedimentos de controle e auto-controle oriundos do próprio material a ser interpretado. É algo como se houvesse um “princípio popperiano” da interpretação, a partir do qual nem toda expectativa de sentido projetada pelo intérprete é possível de ser confirmada [1]. Chamo a isso “a materialidade do texto”, já que no texto-fonte encontra-se o limite “material” a partir do qual toda e qualquer interpretação possível é construída [2].

Kardec reconhece a “materialidade” de suas fontes. Em A minha iniciação no espiritismo, ao relatar o processo que deu origem à primeira edição de Le Livre des Esprits, afirma que as comunicações permitiram “provar” a existência do mundo espiritual, bem como conhecer sua constituição e seus costumes, num processo semelhante ao que poderia chamar-se de uma “etnografia do mundo dos espíritos”. Pois, segundo descrição do próprio Kardec, cada Espírito se convertera, em razão de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, em uma fonte de informação; exatamente como se chega a conhecer um país ao se interrogar seus habitantes de todas as classes e de todas as condições. Cada um informando-nos de alguma peculiaridade; mas, nenhum deles, individualmente sendo capaz de informar-nos tudo o que é preciso saber; cabendo, portanto, ao observador formar uma visão de conjunto, a partir dos documentos recolhidos por meio dos diversos testemunhos, cotejando-os, coordenando-os e os controlando uns por meio dos outros [3]. Em outras palavras: ao observador cabe eliminar possíveis divergências e contradições em meio à diversidade de relatos disponíveis. A Kardec coube este papel de tentar sanar tais discrepâncias e gerar uma concordância de fundo, mais que de forma (como ele mesmo gostava de afirmar), e retirar daí uma doutrina que se pretende filosófica (racional). Então, parece-me natural, afirmar que Kardec tenha, neste processo, se convertido no autor da doutrina.

Mas, pode-se perguntar: mesmo diante da negativa explícita, tantas vezes repetida por Kardec de que ele não é o autor da doutrina? Sim, mesmo diante de tais assertivas creio ser necessário reafirmar a tese da autoria. Já que negar tal tese seria, a meu ver, defender que a doutrina espírita tenha sido “ditada inteira” pelas fontes de informação das quais Kardec dispunha. O que contraria sua própria compreensão da dinâmica da “revelação espírita” dada a conhecer no primeiro capítulo de A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo (1868). Neste, que é o último de seus grandes tratados doutrinários, Kardec define assim o duplo caráter da revelação espírita:

Por sua natureza a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira, porque foi providencial seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desejo premeditado do homem: porque os pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens sobre as coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhe importa conhecerem, já que hoje estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa; por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as consequências e aplicações. Em suma, o que caracteriza a revelação espírita é o fato de ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem. [4]

Assim, indo além das constantes negativas – e poderia citar aqui várias vezes em que recusa ser considerado autor da doutrina ou fundador do Espiritismo - Kardec parece desenvolver  uma crescente consciência de sua autoria em detrimento da transcendentalidade da doutrina. Por exemplo, se tomarmos a folha de rosto da primeira edição de O Livro dos Espíritos (1857), poderemos ver que ali aparece a seguinte descrição da obra: “Écrit sous la dictée et publié par l’ordre d’Esprits Supérieurs” (Escrito sob o ditado e publicado por ordem de Espíritos Superiores). Nas edições seguintes essa descrição é substituída por: “Selon l’enseignement donné par les Esprits supérieurs à l’aide de divers médiums. Recueillis et mis en ordre par Allan Kardec” (Segundo o ensinamento dado pelos Espíritos superiores através de diversos médiuns. Recolhidos e postos em ordem por Allan Kardec). Ora, uma doutrina “ditada” por alguém difere muitíssimo de uma doutrina “segundo os ensinamentos” de alguém.

O que desejo demonstrar com este exemplo é que, entre 1857 e 1868 a compreensão de Kardec sobre o tema  se modificou. De uma doutrina “ditada”, e portanto, literalmente dos Espíritos; para uma crescente tomada de consciência do papel do “homem” em sua elaboração. Um papel fundamental já que os ensinamentos que lhe servem de fonte – dados, segundo Kardec, por Espíritos - precisam ser recolhidos e postos em ordem (comparados e fundidos; classificados e muitas vezes modificados, reparados, etc. como vimos em Allan Kardec: o autor da doutrina dos espíritos?) . Um indicativo de que, em seu estado bruto, tais ensinamentos são insuficientes – seja por sua diversidade, seja por suas ambiguidades ou divergências explícitas - para formar doutrina (um sistema coeso) de caráter filosófico (racional).

Em minha opinião, tal consciência apenas não se torna explícita declaração de autoria devido ao conflito existente entre cumprir a agenda metodológica iluminista-positivista que garantiria ao espiritismo seu caráter científico; e o risco de transformar essa doutrina em apenas um “sistema pessoal de ideias” sem qualquer autoridade.

 


[1] O filósofo italiano Umberto Eco fala da intentio operis (a intenção do texto, da obra) que serviria como este “princípio popperiano” para distinguir entre uma boa e uma má interpretação. (Cf.: ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Ou ainda: ______. Os limites da interpretação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995).

[2] É desnecessário dizer que essa “materialidade do texto” é uma metáfora para a imposição de limites de sentido dados pelo texto a partir dos quais algumas interpretações tornam-se possíveis e outras impossíveis.

[3] Cf.: KARDEC, Allan. A minha iniciação no espiritismo. In: ______. Obras Póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p. 350-351. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra).

[4] KARDEC, Allan. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p. 28-29. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra). O negrito é meu.

2 comentários:

Vital Cruvinel disse...

Olá, Augusto!

Essa percepção gradual por parte de Kardec de que a autoria da doutrina é dele pode ser baseada também nos textos cada vez mais trabalhados e revisados deixando de lado os textos originais (dos espíritos).

Eu só não sei se o aumento desta percepção foi sempre linear. Talvez, quando escreveu O Evangelho Segundo o Espiritismo é possível que Kardec tenha se deixado levar pela idéia da Terceira Revelação e diminuído esta percepção de que a autoria é dele mesmo.

Mas, como você bem observou, em 1868 ele deixa essa percepção bem clara no Caráter da Revelação Espírita.

Abraço!

Augusto Araujo disse...

Oi Vital, você tem razão, essa progressiva tomada de consciência da autoria da doutrina nem sempre foi linear. Mesmo em "O Livro dos Espíritos" (1860), quando Kardec modifica a descrição da obra na página de rosto, ele também preserva nos "Prolegômenos" a ideia de que a doutrina teria sido ditada pelos Espíritos. O que me parece é que Kardec vive certo "dilema" nessa questão da autoria. Em 1868 a coisa fica realmente bem mais clara.

No caso que você cita, da teoria das três revelações, realmente Kardec assume a teoria tal como recebe das comunicações que lhe deram origem. No entanto, observe como ele as liga a outras que não tratam diretamente do tema das três revelações. Ou ainda, como ele reordena os parágrafos da comunicação originalmente publicada na Revista.

Por outro lado, penso que esse recurso à autoridade da revelação dada por via de um único médium, e o uso dela para reler outras comunicações que não tratam diretamente do mesmo tema, implicam num ato criativo de Kardec. Portanto, ainda assim, ele continua sendo o autor do conjunto da doutrina, mesmo que os princípios doutrinários tenham chegado a ele por meio de fontes externas.

Um abraço!