Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

domingo, fevereiro 27, 2011

Chico Xavier no Carnaval: o espiritismo e a cultura popular

 

Chico-03

 

No último dia 15 o jornal O Globo noticiou que a Escola de Samba Unidos do Viradouro, do Rio de Janeiro, levará este ano, à Marquês de Sapucaí, um setor inteiro dedicado ao espiritismo. Segundo a reportagem de Rafael Galdo:

No enredo “Quem sou eu sem você” Jack [Vasconcelos, o carnavalesco] fará no último carro, uma homenagem a Chico Xavier. O médium será representado por uma escultura em que aparecerá psicografando, cercada por 60 componentes, alguns deles espíritas, que farão uma performance de mediunidade. (A reportagem pode ser lida integralmente aqui).

Ainda segundo o jornalista, a estética deste setor da Escola será inspirado pelo filme “Nosso Lar”, de Wagner Assis. Informa ainda que o ator Renato Prieto é quem faz a ponte entre a Escola e a Federação Espírita “[…] para evitar que qualquer preceito do espiritismo seja desrespeitado na apresentação da vermelha e branca”.

Nos últimos dias tenho tentado observar a reação do movimento espírita frente à notícia. Rapidamente a FEB (Federação Espírita Brasileira) emitiu “Nota de Esclarecimento” em 18 de fevereiro, na qual declara não ter tomado qualquer participação em entendimentos prévios com a Escola de Samba.

Também alguns bloggers espíritas têm se manifestado sobre a polêmica homenagem. Por esses dias, e por várias vias, chegou-me a reflexão feita por Jorge Hessen, conhecido escritor e colunista espírita que, para dizer o mínimo, mostra-se indignado de que o tema “espiritismo”, assim como a “[…] personalidade impoluta de Chico Xavier” sejam ligados à festa profana.

Em seu comentário, Hessen, afirma ser desconcertante o “comportamento light” demonstrado pela FEB em sua “Nota de Esclarecimento”, já que divulgar a Doutrina Espírita por essa via não preservaria seus valores éticos, mas sim a deturparia “[…] em suas bases, causando incalculáveis prejuízos morais, com grande responsabilidade vinculada”.

No mesmo artigo, intitulado “Chico Xavier na Sapucaí jamais poderá ser um enredo da razão”, Hessen mesmo afirmando não querer ser o “fiscal do espiritismo”, nem “[…] ditar regras de falsos purismos e extemporâneos sermões embebidos de ladainhas […]”, esclarece seu ponto de vista, à maneira de uma homilia moralizante que percorre desde as origens romanas e egípcias do carnaval, passando por dados estatísticos sobre traição durante os festejos e por citações do “espírito” Emmanuel, psicografadas pelo médium agravado na homenagem profana, para por fim, concluir que o “[…] o carnaval é uma ameaça ao bem-estar social […]”.

Respeitando, obviamente, o direito de crença do citado articulista, bem como seu direito de livre expressão e dos demais amigos e amigas espíritas que se colocam na mesma posição que ele; creio ser necessária uma reflexão, no melhor estilo “doutrinário”, sobre a “lei de causa e efeito”, e nos questionarmos: a quem cabe a responsabilidade da inserção do espiritismo na cultura popular brasileira, senão aos próprios espíritas?

Durante anos não apenas a FEB, mas o grosso do movimento espírita brasileiro, tem divulgado ativamente e incentivado a popularização da Doutrina Espírita e da imagem de Chico Xavier, de todas as maneiras possíveis. Seja nos livros a preços acessíveis, seja na assessoria para novelas, séries, “casos verdade”, e, mais recentemente nos filmes. Inegavelmente todas essas estratégias têm se mostrado bem sucedidas e, hoje, Chico Xavier (e por tabela, o espiritismo) fazem parte do patrimônio da cultura popular nacional.

O próprio Hessen, quando do lançamento do filme “Nosso Lar”, fez questão de louvar a obra em artigo intitulado “Nosso Lar” -  Uma monumental obra de arte cinematográfica, publicado em seu site. Neste artigo convida, ao final, o público espírita e não-espírita para

[…] experienciar (sic) um instante excelso na história do cinema brasileiro, o momento de transformação, a ocasião em que o cinema mundial deverá redefinir sua função na sociedade, deixando para o “nunca mais” e cerrando os pórticos de tudo o que ele próprio conhecia e praticava como segmento da sétima arte, atualmente tão pobremente explorado.

Exageros à parte, já que nem o livro nem o filme podem ser genuinamente classificados como “obra de arte monumental”, é preciso perceber que ao adentrar o cinema, assim como a televisão, o espiritismo deixa de ser apenas uma doutrina de contornos bem definidos e praticada nos centros oficialmente constituídos, para se tornar um elemento de cultura popular. E, portanto, as referências a ele, bem como a seus personagens mais marcantes – e quem mais marcante no espiritismo brasileiro que Chico Xavier? – são absorvidos e apropriados pelos mecanismos de manifestação dessa mesma cultura.

Manifestar indignação, ou mesmo consternação, com o fato de que Chico Xavier e o espiritismo serão retratados na maior festa popular do Brasil, é sim a manifestação de um “purismo extemporâneo”. Um purismo não apenas de caráter moralizante, carola; mas, um purismo estético mal informado, que se pauta pela (falsa) constatação de que há manifestações culturais mais sublimes e outras menos puras.

Pessoalmente não sou muito ligado ao carnaval. Quando criança e adolescente até gostava de acompanhar, pela TV, os desfiles de escolas de samba e, principalmente, a apuração dos resultados. Mas, nunca gostei de estar no meio do barulho, da confusão. E minha ligação com o espiritismo é mediada não pela adesão, mas pelo interesse acadêmico, apenas. Contudo, compreendo e aplaudo a “Nota de Esclarecimento” da FEB que não lava as mãos, como afirma Hessen, mas demonstra um momento único de compreensão da liberdade de expressão garantida pela Constituição do Estado Brasileiro. Atitude bem diferente daquela tomada pela Igreja Católica Romana quando, em 1989, o carnavalesco Joãozinho Trinta e a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, tiveram um carro alegórico censurado por trazer uma representação do Cristo Redentor.

4 comentários:

Nícia Cunha disse...

Caro Augusto,
Concordo inteiramente com você. Sua análise e opinião foram primorosas. Aliás, como tudo o que produz. Parabéns.

Marcos Paterra disse...

Muito boa sua analise, onde se destaca uma ótima critica (opinião) elaborada de forma construtiva.
Abraços
Marcos Paterra

Augusto Araujo disse...

Queridos Nicia e Marcos:

Agradeço as palavras e o encorajamento. É uma honra para mim tê-los como leitores! Grande abraço! A.

Donha disse...

Olá Augusto,

Mais um ano começa e volta o lúdico prazer de ler seu blog.
Bom não só nas abordagens do espiritismo (que, espero, continuem pelo menos até o final do doutoramento), como também nas notícias e comentários sobre as relações (nem sempre cordiais) entre a "academia" e o "templo".
Abraços. Donha