Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

sexta-feira, setembro 01, 2006

O templo, o deus, a verdade...

(...)
Agora pomos a questão da verdade tendo a obra em vista. Contudo, para que nos tornemos mais conhecedores daquilo que está em questão, é necessário tornar novamente manifesto o acontecimento da verdade na obra. Elejamos deliberadamente para esta tentativa uma obra que não pertence à arte figurativa.

Uma obra arquitectónica, um templo grego, não copia coisa alguma. Está simplesmente aí de pé, no meio do vale rochoso e acidentado. A obra arquitectónica envolve a figura do deus e, neste encobrimento [Verbergung], deixa-a avançar, através do pórtico aberto, para o recinto sagrado. Por meio do templo, o deus torna-se presente no templo. Este estar-presente do deus é, em si, o estender-se e delimitar-se do recinto como um recinto sagrado. Porém, o templo e o seu recinto não se desvanecem no indeterminado. A obra que o templo é articula e reúne pela primeira vez à sua volta, ao mesmo tempo, a unidade das vias e das conexões em que nascimento e morte, desgraça e benção, triunfo e opróbrio, perseverança e decadência... conferem ao ser-humano a figura do seu destino [Geschick]. A vastidão vigente destas conexões que estão abertas é o mundo deste povo histórico. É só a partir dele e nele que este retorna a si mesmo para a realização da sua determinação.

Aí de pé, a obra arquitectónica repousa sobre o solo rochoso. Este assentar da obra extrai da rocha a obscuridade do seu suportar rude e, no entanto, a nada impelido. Aí de pé, a obra arquitectónica resiste à tempestade furiosa que sobre ela se abate, e desta forma, revela pela primeira vez a tempestade em toda a sua violência. Só o brilho e o fulgor da rocha, que aparecem eles mesmos apenas graças ao Sol, fazem, no entanto, aparecer brilhando [zum Vorschein bringen] a claridade do dia, a amplitude do céu, a escuridão da noite. O erguer-se seguro torna visível o espaço invisível do ar. O carácter imperturbado da obra destaca-se ante a ondulação da maré e deixa aparecer, a partir do seu repouso, o furor dela. A árvore e a erva, a águia e o touro, a serpente e o grilo conseguem, pela primeira vez, alcançar a sua figura mais nítida e, assim, vêm à luz como aquilo que são. Desde cedo, os gregos chamaram a este mesmo surgir e irromper, no seu todo, a phýsis. Ao mesmo tempo, clareia aquilo sobre o qual e no qual o homem funda o seu habitar. Chamamos-lhe a terra. Há que manter afastadas daquilo que esta palavra aqui quer dizer tanto a representação de um amassa de matéria sedimentada, como a representação meramente atronómica de um planeta. A terra é aquilo em que se volta a pôr a coberto o irromper de tudo aquilo que irrompe e que, com efeito, [se volta aí a pôr coberto] enquanto tal. Naquilo que irrompe, a terra está a ser como aquilo que põe a coberto.

A obra que o templo é, estando aí de pé, torna originariamente patente um mundo e, ao mesmo tempo, repõe-no sobre a terra, a qual desse modo, só então surge como solo natal. Mas os homens e os animais, as plantas e as coisas nunca estão aí nem são tidos como objectos imutáveis, para, mais tarde, constituírem, de forma casual, a envolvência apropriada para templo, que, um dia, se acrescenta também àquilo que está presente. Aproximamo-nos mais daquilo que é se pensarmos tudo ao invés [umgekehrt], supondo, evidentemente, que somos, antes de mais, capazes de ver como tudo se nos apresenta de outro modo. A simples inversão, efectuada por si mesma, não resulta em nada.

O templo, no seu estar-aí-de-pé, dá às coisas pela primeira vez o seu rosto, e aos homens dá pela primeira vez a perspectiva acerca de si mesmos. Esta vista permanece aberta enquanto a obra for uma obra, enquanto a obra for uma obra, enquanto o deus não se tiver escapado dela. O mesmo acontece com a imagem do deus, que o vencedor, no torneio, lhe consagra. Não é uma cópia para que, por ela, mais facilmente se tome conhecimento do aspecto do deus, mas sim um a obra que deixa o próprio deus estar presente e, por isso, é o próprio deus. O mesmo é válido para a obra lingüística. Na tragédia, nada é representado ou exibido, trava-se antes a luta dos novos deuses contra os antigos. Como a obra lingüística se constitui no dizer do povo, não fala acerca desta luta, mas altera o seu dizer, de modo que cada palavra essencial trava esta luta e propõe à decisão o que é sagrado e o que é ímpio, o que é grande e o que é pequeno, o que é corajoso e o que é cobarde, o que é elevado e o que é superficial, quem é senhor e quem é servo (cf. Heráclito, frg. 53). (...).

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In: _____. Caminhos de Floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002. p.38-41.

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