Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

domingo, março 14, 2010

“Um sincretismo religioso com extraordinárias características primitivas”.

 

Um texto de Gabriele Weiss *

Suponhamos que um integrante de um povo nativo, um Botocudo, visitasse a Europa e participasse de uma missa. Ele não deverá saber mais do que os viajantes europeus do último século sabiam sobre as formas religiosas dos povos nativos. Toda observação do viajante será mediada por um intérprete. Em seu relatório de viagem ele irá, ao contrário do que podemos verificar em muitos relatórios europeus, excluir toda caricatura do que ele não tenha entendido. Sua apresentação objetiva e sem preconceito poderia ser como a seguir:

missa1

Os cristãos na Europa acreditam em um ser superior, que eles chamam de Deus. Deus criou tudo. Ele mora no céu e pode, a cada momento, atuar no mundo dos homens. As pessoas não o veneram completamente, apesar de seu poder sem limites, contudo eles têm por todos os lados imagens de seu filho e da mãe de seu filho, que aliás não é sua mulher. Os cristãos a chamam de Senhora e como meu tradutor sempre repete, “Mãe de Deus”. Embora ela seja mãe do filho de Deus, ela não é mulher de seu pai. Ela não é nem mesmo a mãe deste, pois Deus não tem pais. Ninguém sabe de onde ele vem, e os cristãos que dão tanto valor às genealogias, não se dão conta disso. A “mãe de Deus” era, aliás, uma pessoa terrestre totalmente normal e seu filho viveu em um determinado tempo e em uma terra distante da própria Europa. Neste lugar, curiosamente, não tinha nenhuma pessoa que venerava Deus e seu filho da mesma forma com que os europeus o fazem. Os cristãos europeus – assim poderia continuar o Botocudo em seu relatório – veneram não somente a Deus, a seu filho humano e a mãe deste último, mas também outras pessoas mortas, que fizeram milagres, denominadas santas. A veneração é expressa também através da coleção de ossos de santos  que são guardados em lugares específicos nas igrejas, consagradas como locais de culto. Além disso os cristãos comem, como eles sempre reafirmaram, em ocasiões específicas – alguns até mesmo a cada semana – a carne do filho de Deus e bebem o seu sangue. Em meus questionamentos me fizeram entender que Deus, como pai do filho histórico humano, é apenas uma parte de si mesmo, ou melhor, apenas um terço. O segundo terço é seu filho, o terceiro terço não é como eu imaginava a mãe, mas sim algo que meu tradutor tentou me explicar em sua língua como “espírito santo”, algo que significa ar, respiração ou vento. Nas representações estéticas os cristãos representam o “Espírito Santo” como uma pomba e o filho de Deus como um pequeno cordeiro. E toda a religião, na qual as pessoas se sentem como irmãos – como eles mesmos dizem e a gente nem sequer percebe –, é representada muitas vezes através de um peixe.

Este relatório de viagem, objetivo e completo, corresponde perfeitamente às ntigas informações fornecidas por viajantes sobre a religião dos povos naturais. Cedo ou tarde ele iria ser interpretado por um cientista da religião Botocudo. O que poderia resultar no seguinte:

A religião dos europeus é em muitos aspectos ilógica. O que podemos reconhecer, no entanto, é um monoteísmo rudimentar com características politeístas. Além disso, podemos observar inúmeras provas de uma forte mistura com os princípios de religiões primitivas, no caso, a crença no espírito santo do animismo, o culto de relíquias sagradas, formas típicas do fetichismo, os símbolos de animais como resquícios do totemismo e o rito cerimonial da santa ceia do canibalismo sagrado. Percebemos no todo um sincretismo religioso com extraordinárias características primitivas.

___________________________

* Trecho extraído de: WEISS, Gabriele. Elementarreligionem. Eine Einfürung in die Religionsethnologie. Sringer-Verlag. Wien – New York, 1987.

0 comentários: