Rabino Nilton Bonder *
(Fonte: Amai-vos)
Não existe uma pessoa plural que inclua a todos. A primeira pessoa do plural - nós -- poderia ter essa característica inclusiva, não fosse pela percepção de uma da segunda pessoa do plural - vós -- que invariavelmente constrói uma terceira pessoa -- eles. No entanto, a lógica importada da individualidade, onde um "eu" depende de um "tu" e produz um "ele", não é a única possível para o coletivo. O "nós" que não inclui todos não é uma necessidade existencial como o "eu" que não engloba o "tu". Portanto, é teoricamente possível sonhar com uma primeira pessoa do plural que inclua todas as pessoas - um "nós" que é também "vós" e "eles".
Tão simples como mudar o conceito "plural" de nossa civilização é o desafio que Claudia Werneck propõe em seu livro Sociedade Inclusiva. Seu poder maior é nos fazer refletir sobre o conceito de "Todos". Quem incluiríamos em nosso "todos"? Não o "todos" do discurso e da moral, mas o "todos" de pele, um "todos" que nos venha natural. Não o "todos de mentirinha", como explica a autora, que é um "todos" da curiosidade e da diplomacia, mas um "todos" que é fato e crença.
Sua preocupação primeira é desmascarar, com a gentileza que lhe é um dom, a diversidade de significados da palavra "todos". Não só os indivíduos falam de "todos" que compreendem as mais diferentes noções, como as próprias instituições fazem uso de distintos "todos". Sociedade Inclusiva propõe o enxergar radical de que se "todos" não incluir "tudo" então não é "todos".
O livro se assemelha a um grande diálogo entre o ser humano e sua consciência. Levanta perguntas e responde, confronta lucidez e interesses, aponta saídas e reconhece limites. A primeira sensação é de que vamos nos defrontar com um texto de crítica e reprovação.
No entanto, o texto é, acima de tudo, humano. Ao mesmo tempo em que expõe a crueldade de nossas exclusões, tem o grande mérito de se manter voltado mais ao grito e ao fazer conhecer do que ao julgamento. Por isso sua leitura é convidativa. O leitor se enxerga prisioneiro de seus "todos" parciais mas não sai de cada capítulo com um sermão e sim com um convite à ação e ao desafio do comprometimento. De carrascos executando as exclusões de todo o dia, Claudia Werneck faz do leitor um potencial parceiro na tarefa de incluir. Seu segredo, sua mensagem maior, é que um "todos" que inclua todos, não seja uma utopia, mas percebido como a única possível estratégia.
O beneficiário maior da inclusão não é o incluído, como pensaríamos, mas quem quer que amplie o seu "todos". O custo de um "todos" composto de tão poucos é a razão da dívida que a sociedade está pagando. Seu custo é menos alegria e menos bem estar para todos-tudo. Há porém um ar de novidade nas denúncias de Claudia. Esta novidade não está nas informações prestadas, mas em sua abordagem doce e afirmativa, misto de desabafo e maturidade: "Dá para ser feliz num país com tanta exclusão?". Quando imaginaríamos na angustia da pergunta sua própria resposta, a autora surpreende: "Dá!".
Dá para ser feliz em meio a qualquer situação desde que se busque no momento, no agora, a incondicionalidade da inclusão.
A verdade é que quando nos damos conta da dimensão da dívida social, seja no plano nacional ou mundial, nos tornamos prisioneiros da esterilidade de acusações, de denúncias e até mesmo de reflexões. A originalidade de Sociedade Inclusiva é não ser uma teoria sobre o humano mas, acima de tudo, uma tentativa de proposta, de estratégia.
O impensável e o inconcebível têm mais serventia como uma estratégia do que como uma utopia. Incluir não é o sonho, mas incluir é o método para alcançar um "todos" que seja pessoa única do plural. Por isso identificar o menos incluído de todos nos "todos", se faz importante como estratégia e como ação na busca de um "todos" incondicional. E a autora aponta no "deficiente físico" um "outro" que é singular, que é chave, pois é um "outro" de todos. Não importa quem sejam os seus "todos", o "deficiente" é o excluído "coringa". Ele é o excluído até dos excluídos. Categoria daquele que é definido por suas deficiências e não de suas suficiências, não há "todos" que os incluam a não ser o "todos-tudo". São, portanto, nosso grande patrimônio. Num mundo onde o sonho é produzir o ser humano perfeito fazendo uso da engenharia genética, o "deficiente" é messiânico. É ele que pode nos ensinar a suportar a diversidade e os limites; é ele que pode nos afastar do "todos-eu" e nos aproximar do "todos-tudo".
Sociedade Inclusiva não fala de escolas inclusivas, de trabalho inclusivo, de medicina inclusiva, de cidadania inclusiva ou de natureza inclusiva como um sonho. Fala de tudo isso como uma estratégia. Uma escola inclusiva, por exemplo, não é uma meta a ser alcançada no futuro. Mas é hoje, no desafio do presente, um instrumento do futuro. A diversidade na escola não é um entrave à educação mas seu mais importante instrumento.
A homogeneidade é empobrecedora como regra: intelectualmente ela emburrece, espiritualmente ela corrompe, emocionalmente ela aliena e fisicamente ela esteriliza.
Nossa dívida para com nosso "todos" já tão minguado, se contabiliza na pobreza e na falta de sentido que caracterizam nosso mundo de exclusão. Um mundo sem surpresa, um mundo de controle e, sem dúvida, um mundo de menos vida e menos humano. O ato de fazer entrar outros em nosso "todos" é um ato libertador e, em si, a única tarefa da sociedade, da educação e da religião.
O filósofo Martin Buber construiu sua obra mostrando que a questão do "singular" está nas relações "eu-tu" e relações "eu-isto". Quando não há um "eu" de verdade e o reconhecimento de um "tu" de verdade, e vice-versa, não há diálogo e encontro. Sociedade Inclusiva, traz esta questão para o "plural". No entanto, no plural, um "nós" que seja verdadeiro, inclui o "vós" e o "eles". É possível no plural, ao contrário do singular, uma primeira pessoa absoluta que venha a produzir encontro e sentido.
A sensação de estar lendo um livro de "auto-ajuda" quando seu conteúdo é de Ação Social é, com certeza, mais do que um estilo em Sociedade Inclusiva. Parece conter em sua forma um importante ensinamento: a solidariedade e a cidadania, através da síntese da inclusão, são as formas mais profundas e duradouras de "auto-ajuda". Incluir o outro, nos inclui ainda mais. Permite que façamos parte de um "todos" que vale a pena, um "todos" que não é um vazio numérico - um singular fingindo-se de plural. Porque há apenas duas formas matemáticas do plural virar singular: ou na plenitude de D'us ou no vazio do egoísmo.
Quem cabe em seu "todos"?
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*Nilton Bonder, nasceu em Porto Alegre, em 27/12/57. Ordenou-se Rabino, pelo Jewish Theological Seminary, N.Y, em 1987. Escreveu 14 livros vários deles best-sellers no mercado editorial brasileiro e estrangeiro. (http://www.cjb.org.br/)
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