Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estrangeiros vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao fogo. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui, os deuses também estão presentes'. (Aristóteles. De part. anim. , A5 645a 17ff).

quarta-feira, maio 05, 2010

Sincrético é o Outro?

sincretismo (2)

Comentário ao texto de Gabriele Weiss [1]

Há algum tempo desejo publicar este comentário. A correria da vida, minha mente que transita por múltiplos lugares, e um pouco de preguiça inconfessa adiaram até agora a finalização do mesmo. Talvez, ainda, certo receio de melindrar alguns bons amigos que fiz no desenvolvimento de minha atual pesquisa, e que, embora professem um espiritismo laico e livre pensador, ainda se assustam ao ler que Kardec criou uma religião moderna e sincrética.

Para mim, o texto de Gabriele Weiss é provocador no sentido de que questiona a crença implícita toda vez que falamos de sincretismo: sincrético é sempre o Outro. Um crença problemática porque o sincretismo é algo que contraria nossa noção de pureza, contrastando-a ao híbrido, ao misturado, ao miscigenado. E tem sido uma prática comum, não apenas em certas correntes do Movimento Espírita Brasileiro, mas também nas pesquisas acadêmicas sobre espiritismo no Brasil, contrapor o modelo brasileiro ao modelo “original” francês. Assim, o primeiro seria sincrético – como toda a cultura nacional – e o segundo é um espiritismo “puro”, “ortodoxo” e, no dizer de alguns, “não religioso” porque racionalista e anti-clerical.

Um exemplo: tenho encontrado muitas defesas da “pureza doutrinária” do espiritismo em contraste com o “sincretismo afro-católico” (Deolindo Amorim); uma pureza cuja “pedra de toque” (Herculano Pires) seria a obra de Allan Kardec. Mas, me pergunto, e quando o outro olha para nós? O que vê? Quem sabe apenas “Um sincretismo religioso com extraordinárias características primitivas”… Certo, o texto de Weiss, aqui em questão, é apenas um exercício imaginativo. Mas ele nos desloca para o olhar do outro sobre nós, e demonstra claramente, por meio desse exercício de empatia: sincréticos somos todos. Pois, como afirma o antropólogo Pierre Sanchis:

Não se trata mais, pois – pelo menos diretamente – , de identificar o sincretismo com uma forma de confusão ou mistura de “naturezas” substantivas […], mas de afirmar a tendencial universalidade de um processo, polimorfo e causador em múltiplas e imprevistas dimensões, que consiste na percepção – ou na construção – coletiva de homologias de relações entre o universo próprio e o universo do Outro em contato conosco, percepção que contribui para desencadear transformações no universo próprio, sejam elas em direção ao reforço ou ao enfraquecimento dos paralelismos e/ou semelhanças. Uma forma de constante redefinição da identidade social. [2]

Se, até o momento, como afirma Sérgio Ferretti:

Em nossa sociedade, […], o sincretismo é uma categoria discutida principalmente em relação às religiões afro-brasileiras, campo em que tem sido considerado, por alguns, como mais evidente. Hoje, também, já se estuda o sincretismo no Brasil, em relação às religiões evangélicas e neopentecostais. [3]

Pois, que me perdoem meus amigos adeptos do espiritismo laico e livre pensador, bem como aqueles dentre eles que se definem como defensores da “pureza doutrinária”, mas creio ter chegado o momento em que a doutrina e o movimento espíritas, segundo Allan Kardec, devem ser pensados sob o signo do sincretismo. Mas, para tanto, será preciso redefinir o sincretismo como:

[…] um universal dos grupos humanos quando em contato com outros: a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar seu próprio universo. Ou ainda, o modo pelo qual as sociedades humanas (sociedades, subsociedades, grupos sociais; culturas, subculturas) são levadas a entrar num processo de redefinição de sua própria identidade, quando confrontados com o sistema simbólico de outra sociedade, seja ela de nível classificatório homólogo ao seu ou não. [4]

Ou então, como se poderia explicar que Kardec tenha se apropriado de elementos caros à tradição cristã (notoriamente ao cristianismo católico-romano) e os re-significando à luz da nova doutrina? Como compreenderíamos que Kardec pense o espiritismo em continuidade com duas “revelações” anteriores – a Mosaica e a Cristã – e proponha que o espiritismo seja a “terceira revelação”? Ou como explicar que o mesmo Kardec, na Conclusão de sua obra magna afirme tão categoricamente que embora se encontre por toda parte – já que seria tão antigo quanto a Criação – o espiritismo se encontre “[…] principalmente na religião católica e aí com mais autoridade do que em todas as outras [religiões], pois no catolicismo se encontra o princípio de tudo quanto existe no Espiritismo […]” [5].

 


[1] Este texto, recentemente publicado aqui no “Mansões” com o título "Um sincretismo religioso com extraordinárias características primitivas", eu o li a primeira vez numa das disciplinas do doutorado em Ciência da Religião, por indicação do professor Robert Daibert Júnior. Era uma disciplina obrigatória com o sugestivo nome “Religiões do Brasil”. E confesso, foi ali, com esse professor, e com textos como esse, que adquiri uma melhor compreensão acerca do problema do sincretismo.

[2] SANCHIS, Pierre. As tramas sincréticas da história. 1995 p. 3-4.

[3] FERRETTI, Sérgio F. Notas sobre o sincretismo religioso no Brasil – modelos, limitações, possibilidades. TEMPO, Rio de Janeiro, n. 11, pp. 13-26. Jul 2001.

[4] SANCHIS, p. 3.

[5] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. FEB: Rio de Janeiro, 2007. p. 632. (Trad.: Evandro Noleto Bezerra).

1 comentários:

Vital Cruvinel disse...

Olá, Augusto!

De minha parte como espírita eu só tenho a te agradecer por estudar e aprofundar tão importante questão.

Vá em frente!